LUGARES
Taiasmin Ohnmacht
Silvana nasceu pronta, apenas
para ser reconhecida e sua superioridade confirmada.
Certa vez no
cabelereiro, enquanto fazia mechas descoloridas em fios castanhos claros e
fungava ruidosamente por causa de uma rinite alérgica, descobriu-se sentada ao
lado da comissária de bordo que tomou o seu lugar na escala internacional.
- Escondendo (fungada) os brancos? - o
tom era de um comentário qualquer, conversa vazia de salão de beleza. Silvana
fazia boas encenações, sobretudo para si mesma.
- Eu tenho poucos – a comissária passou
a mão nos cabelos, evitando olhar para a ex-colega - prefiro o meu cabelo mais
escuro.
- É, a gente começa assim (fungada), mas
a verdade é que eles só querem guriazinhas. Primeiro é o cabelo, depois botox.
Uma puxadinha aqui, outra ali, mas não adianta, eles te sugam (fungada) e jogam
fora o bagaço. Competência? Não querem nem saber! Quantos anos tu tem?
- Trinta e dois.
As
poucas palavras poderiam matar o assunto, mas não para Silvana.
- Ah, mais uns cinco ou oito anos. Mais
uns cinco, né amor? Eu só durei tanto por que era muito (fungada) competente e,
mesmo assim... Isso que eu trabalhava em péssimas condições, a pressurização, o
ar, tudo, só agravou minha saúde (fungada forçada). Ah, mas eles vão me pagar!
Coloquei na justiça! – quando terminou a frase já estava fanha.
É
bem verdade que todos se incomodavam com os ruídos de Silvana pontuando o
discurso pronto e repetitivo de sua profissão, mas houve algo a mais que ela
esqueceu; resolveu ir a uma festa em Amsterdã, mesmo com voo marcado para as
seis e trinta da manhã do dia seguinte. Embora completamente fanha, até
trabalhou bem durante o embarque, mas depois da decolagem caiu em um sono
profundo do qual só foi acordada com dificuldade. Mas, creiam, ela esqueceu.
Ir
ao banco, sacar o auxílio desemprego, depositá-lo em outra conta para cobrir um
empréstimo, depois atravessar a cidade até a zona norte rumo a mais uma
entrevista de emprego. Com tudo esquematizado, Silvana chegou ao banco, mas o
horário próximo do almoço e o mês em seu início não contribuíram muito, ela
resignou-se a enfrentar uma longa fila.
Seis
caixas eletrônicos, um não fazia saque e estava vazio. Um caixa em teste, um
com saque desabilitado e os outros três desejadíssimos, ocupados por pessoas
ocupadas em pagar contas. Observar todo o movimento fazia com que Silvana
esquecesse um pouco a coceira no nariz, cada vez mais forte. Felicitou-se por
ter saído com tempo de casa.
Vigilante
dos espaços, dava um leve toque no senhor a sua frente a cada vez que a fila
andava e ele não cumpria com a obrigação de colar no próximo da fila.
Alertá-lo para o movimento necessário era, para ela, um favor a si mesma e a
todos que aguardavam a vez atrás dela.
Olhava
com inveja e indignação para os idosos que não participavam da longa espera e a
brabeza crescia quando o estagiário priorizava o atendimento deles, todos com
anos acumulados em contas a saldar de outros. Nessa altura, ela já dava
pequenos espirros e uma das narinas estava trancada. Não era adepta de nenhuma
crença, mas resolveu ter apenas pensamentos positivos na tentativa de suportar
a situação. Foi bem sucedida por alguns minutos durante a quase meia hora de espera.
Silvana
se animou quando chegou a sua vez e percebeu que o senhor, agora no único caixa
que funcionava, faria apenas um saque. Poucos instantes antes houve um
burburinho generalizado entre os clientes do banco, pois dois caixas entraram
em manutenção e a fila lenta ficou algo menos que isso. O estagiário procurou
tranquilizar a todos, seria um transtorno breve, apenas para abastecer as
máquinas de dinheiro. A indignação perdeu corpo, restando apenas uma
intranquilidade difusa.
O
senhor saiu e ela chegou à máquina, o cartão de seu benefício em mãos. O caixa
eletrônico raciocinava com indolência, talvez fosse o excesso de solicitações
do dia, mas Silvana não perdoou, começou a bater na máquina e a olhar para o
estagiário o convocando para alguma atitude. Como que revoltado, o caixa apagou
a tela de atendimento inicial e passou a exibir em grandes letras: EQUIPAMENTO
EM MANUTENÇÃO. Houve um breve momento em que quase chegou às lágrimas. Era como
uma confirmação do que, em seu íntimo, sempre suspeitou, havia uma conspiração
mundial para sacaneá-la, as pessoas não conseguiam conviver com alguém tão
cheia de qualidades quanto ela, e agora nem as máquinas. Dizem que os animais
acabam por assumir uma personalidade semelhante a de seus donos, será que os
aparelhos eletrônicos também? E se os caixas eletrônicos entendessem que os
clientes é que estavam a seu serviço e não o contrário?
- Eu sou cliente! – ela gritou – Eu sou
(fungada) cliente e quero meu direito de ser (fungada) atendida!
Silêncio.
Todos olhavam para Silvana.
- Tu – apontou para o estagiário – tu
mesmo, vem aqui e faz (fungada) esse troço funcionar.
Algumas
pessoas acompanhavam a cena com expectativa, e muitas outras gritavam palavras
de apoio e de protesto.
-Olha aqui, rapazinho, tu vai lá dentro
chamar o (fungada) gerente e diz para ele que tem clientes que exigem (fungada)
ser atendidos.
Ela
gritava, agora estimulada pelo grupo de pessoas que também aguardavam. O
estagiário estava constrangido e assustado, quase encostado na parede oposta
aos caixas eletrônicos. Dois seguranças não sabiam se mantinham suas posições
na porta giratória ou saíam para inibir a agitação liderada por Silvana.
- Esse (fungada) banco vive dos nossos
impostos, das taxas abusivas sobre nosso dinheiro!
Cada
palavra dela levava as pessoas a uma explosão de indignação. Outras falas, não
tão organizadas, mas altas o suficiente para ela escutar iam abastecendo-a de
argumentos.
O
estagiário sumiu banco adentro, mas logo foi substituído por um funcionário que
garantiu pronto restabelecimento do atendimento. Silvana escutou um barulho
atrás da divisória que protege os fundos dos caixas eletrônicos, olhou para a
tela e ela estava reiniciando. Preparou-se para sua vez.
Agora
com quatro dos seis caixas funcionando, as queixas eram esparsas, alguns
clientes recém chegados na agência nem tomaram conhecimento do pequeno tumulto.
Silvana terminou todas suas transações liberando o atendimento para a pessoa
seguinte, começou a ser aplaudida pelos que haviam se sentido representados.
Abanou para todos com um largo sorriso. Pensou que seria bom falar alguma
coisa.
- Nós somos fortes, temos que mostrar
para eles que o banco (espirro) é nosso!
Olhares
confusos, olhares de aprovação, mas a maior parte dos olhares divididos entre o
próximo da fila e o relógio.
Silvana
deu uma fungada e saiu do banco. Orgulhosa de si, entendeu toda a situação como
uma confirmação de seu valor. Era uma líder. Quem sabe uma carreira política ou
sindical?