(Teatro)
Taiasmin Ohnmacht
Personagens
Mirela: mulher atraente de 40 anos, nervosa e
carente.
José: homem de 60 anos, aparência
desleixada, barrigudo, agressivo.
Paulo: homem de 40 e poucos anos,
solteiro, colega de trabalho de Mirela.
Cena 1
Mirela e José.
Sala de estar, meia-luz.
Balcão, sofá de três lugares, televisão, bolsa sobre o balcão. Mirela e José
estão lado a lado no sofá, entre eles, um pequeno espaço. Assistem futebol na
tv. Mirela veste roupas simples e tem uma aparência mal cuidada. José está de
camiseta e cueca samba-canção.
José: Vem cá, mulher! Não fica distante
assim, não! Junta aqui, meu chicletinho querido. A gente foi feito pra ficar
sempre juntinho.
Mirela,
contrariada, olha para José e fica bem próxima dele, que passa o braço por trás
dela. Eles ficam um pouco assim, até que José começa a olhar para ela e para a
tv, avaliando o interesse de Mirela pelas imagens do jogo.
José: Tu vai ficar assim, mulher? Pensa
que pode ficar olhando as pernas e bundas desses jogadores? Mas tu é uma vadia,
mesmo! Pode ir na cozinha preparar a janta e lembra: estou sempre ligado em ti!
Mirela
levanta em silêncio, mas demonstra nervosismo, sai de cena enquanto José coça o
saco e se espalha no sofá, olhando ao jogo.
Alguns
segundos depois, Mirela retorna e arruma a mesa colocando pratos e talhres.
Chama José para jantar. Os dois se sentam à mesa.
José: Quando tu vai pedir demissão?
Mirela (espantada): eu não vou pedir
demissão! Eu gosto do meu trabalho.
José: Sei. Tu gosta é de ficar desfilando
pro teu chefe.
Mirela: Eu já te falei mais de mil vezes
que a minha relação com o Paulo é apenas profissional. Trabalhamos na mesma
empresa, só isso.
Depois
de alguns minutos de silêncio ela completa:
Mirela: E eu gosto do meu trabalho.
José
faz uma careta ao escutar isso.
José: O que tu tem que te convencer,
Mirela, é que nunca vai encontrar homem melhor que eu. Eu cuido de ti, mostro
pra ti como as coisas devem ser e ainda te trato como uma princesa. Ninguém vai
te amar mais que eu.
Mirela
faz uma careta ao escutar isso.
José
levanta.
Mirela: Não vai acabar de comer?
José: Não, perdi a fome só de olhar pra
cara dessa comida. A gente ganharia mais se tu fizesse um curso de culinária em
vez de trabalhar fora. Vou dormir.
Ao
passar pelo balcão, José para em frente a bolsa de Mirela.
José: Ainda não olhei a tua bolsa hoje.
Mirela
fica tensa.
José: Quando for deitar leva junto pra eu
dar uma olhada.
José
sai de cena.
Mirela acaba de comer,
retira os pratos, alguns talheres permanecem na mesa, incluindo uma faca. Ela
vai para o sofá, se deita confortavelmente, pega o controle remoto e, com
prazer começa a assistir um programa, assim que ela se acomoda, escuta José, de
fora da cena:
José: Vem deitar, Mirela! Estou te
esperando.
Mirela: Vai dormir, homem!
José: Vem deitar, que eu não tô
conseguindo dormir.
Mirela (brava): Tu não dorme com os meus
olhos! Me deixa em paz!
Alguns
segundos de silêncio:
José: Não me faz te buscar aí, Lembra da
última vez? Melhor tu vir com tuas próprias pernas. E vem rápido que precisamos
dormir cedo. Amanhã vou contigo assinar tua demissão.
Mirela
treme de nervosa, desliga a tv e se levanta. Suas feições estão visivelmente
alteradas.
Mirela (com um tom de voz alterado): Já
vou, amor!
Mirela olha pela sala.
Vai até a mesa, pega uma faca de cozinha e a empunha. Pensa e larga a faca na
mesa. Anda até o balcão pega um copo e uma garrafa de whisky, leva para a mesa
e, tremendo enche o copo com o líquido.
Mirela: Já estou indo, amor! Vou levar um
whiskinho pra relaxar.
De
fora de cena se escuta uma risada prazerosa.
José (animado): hoje vai ter festa! Que
noite!
Mirela
mexe em sua bolsa e tira um pequeno frasco, segura ele com força entre suas
mãos, expressa alguma dúvida, mas por fim, despeja o conteúdo dentro do copo.
Pega o copo e leva para José.
Mirela: Claro que vai ter festa! Essa e em
todas as próximas noites...
Mirela
sai de cena.
De
fora da cena se escuta o diálogo:
José: Eu estava precisando desse trago.
Mas, engraçado, tem um gostinho meio estranho.
Mirela: Bebe, amor. É whisky antigo, nem
um autêntico escocês reclamaria.
Barulho
de vidro espatifando no chão.
Cena 2
Mirela e Paulo.
Mirela linda, muito arrumada e sedutora.
Paulo bem arrumado, veste roupas joviais e descontraídas.
Sala
de estar de Mirela. Muito iluminada. Em cima do balcão um vaso tipo urna, com
uma tampa e um pequeno rádio.
Mirela sozinha na sala.
Mirela: Ah, ele vem! Paulo vem! Eu amo
esse homem! E se ele vem é porque também gostou de mim! Depois de tanto tempo
só suspirando por ele no escritório...
Mirela
para surpresa como quem escuta um barulho inesperado.
Mirela: Preciso parar com isso! Eu sou uma
mulher livre! José me deixou porque quis! Ele se foi!
Ela
suspira e parece mais calma.
Mirela: O Paulo vai chegar daqui a pouco, agora
eu sou do Paulo, preciso me acalmar.
Mirela
olha para o balcão, vai até ele, abre e tira um copo e uma garrafa de whisky,
serve a bebida no copo o coloca ao lado do vaso.
Toca
a campainha, Mirela sorri e sai de cena. Ela retorna em seguida aos beijos e
amassos com Paulo.
Mirela: Só um pouco, Paulo! Espera!
Paulo: Esperar o quê, Mirela? Cansei de
esperar por isso! Eu te quero muito, não aguento mais ficar só te olhando lá no
escritório. Eu pensei que nunca fosse conseguir me aproximar de ti, te desejo
desde quando tu ainda era casada.
Mirela: Não! Eu te pedi pra não falar
nele.
Paulo: Como assim? Tu não me disse que ele
te deixou? Vai me dizer que ainda quer ele de volta?
Mirela: Deus me livre! Aquele homem era um
demônio na minha vida. Vigiava todos os meus passos. Não me deixava viver, me
afastou da família e amigos, dormia com um olho aberto e outro fechado, achava
que eu me levantava no meio da noite pra me encontrar com outros homens.
Paulo se aproxima de
Mirela, bota a mão delicadamente nos lábios dela, pedindo silêncio e a beija.
Paulo: Então, Mirela, vamos esquecer ele,
vamos pensar na gente.
Mirela
se afasta novamente e se senta no sofá.
Mirela: Ah, não dá pra ser assim. Quem
sabe a gente conversa um pouco antes.
Paulo
anda pela sala, para ao lado do balcão, pega o copo, cheira e toma um gole.
Mirela olha espantada.
Paulo (entediado): Tá, tu quer falar sobre
o quê? Economia, política?
Mirela: Respeito.
Paulo: Eu tô brincando, Mirela! Claro que
eu sei que tu é uma mulher inteligente.
Mirela (fala se referindo ao copo):
Respeito com as coisas dos outros. Não pode ir pegando assim.
Paulo olha para o copo em
sua mão e faz pouco caso. Deixa o copo em cima do balcão de novo e abraça
Mirela.
Paulo: Não pode? E tu? Eu posso pegar?
Esse teus lábios, esse teu corpinho que me deixa louco!
Mirela
ri e os dois se beijam apaixonadamente até ela se assustar com algo, Paulo não
consegue entender.
Mirela: Tu ouviu isso?
Paulo: O quê? Não escutei nada.
Ela
caminha tensa pela sala e para perto do balcão.
Paulo: Relaxa, Mirela. Até parece virgem!
Pensei que depois de ter passado por um casamento, tu fosse mais quente.
Mirela (começa a frase com ênfase e
termina desanimada): Tu está me chamando de fria? Pois saiba que eu deixava o
José tão louco que ele nunca mais me deixou em paz...
Paulo: Desculpa, eu não quis dizer isso,
esqueci que as mulheres são cheias de mimimi.
Mirela (séria): Tu não me conhece! Agora
vou te mostrar quem realmente sou! Quer tal streptease?
Paulo
fica muito animado, comemora e se joga confortavelmente no sofá.
Mirela
anda até ao balcão para ligar o rádio. Hesita, olha para Paulo.
Mirela: Dá pra apagar a luz?
Paulo: Como assim, Mirela? Streptease no
escuro?
Mirela: Já sei!
Mirela
pega um pano e cobre o vaso na cômoda.
Paulo: O que tem aí? Tu te separou mesmo?
O que tu tem com esse vaso? O que tem aí dentro?
Mirela
está assutada.
Paulo: O teu ex te vigia? Ele colocou um
microfone aí? Câmaras pra te vigiar?
Paulo
levanta determinado e vai em direção do vaso, Mirela tenta oferecer obstáculo
com o próprio corpo, mas Paulo consegue puxar o pano e derrubar o vaso que cai
esparramando cinzas no chão. Mirela grita e se abaixa desesperada tentando
recolher as cinzas.
Mirela: José!
Ela
olha para Paulo.
Mirela: O que tu fez com o José? Ele me
atormentava, mas não merecia ficar todo espalhado assim!
Paulo: José? Isso é o José? Ele morreu? Tu
guarda as cinzas dele?
Mirela: Tu vai ser morto se não for embora
daqui agora mesmo!
Paulo
sai gritando.
Paulo: Louca! Louca!
Mirela se abaixa e começa
pateticamente a juntar as cinzas de José.
Mirela (chorando): José, não te preocupa,
eu vou te arrumar direitinho. Bem que tu disse, José, que eu nunca iria
encontrar alguém como tu. Calma, querido, vou te colocar no lugar. Não te
preocupa, amanhã vou servir um whisky temperado pro Paulo, não te preocupa, meu
bem, ele vai ter o que merece.
Mirela (de repente para de chorar): Dá
pra, pelo menos, fechar os olhos?
Apagam-se as luzes.