Taiasmin Ohnmacht
O corpo todo dolorido. Depois de três
meses ele entendeu; há dores que não passam, mas talvez já soubesse disso.
As coisas aconteceram, não escolheu,
não provocou, mas foi obrigado a colocar um ponto final.
Paulo olhou as paredes manchadas,
restos de reboco e ferros aparentes. Sentado no chão frio e irregular, se viu
com a caixa de cimento e a trolha reparando um mundo que desmoronava.
Cheiro de mofo e suor. Era difícil
dormir. Ao começar a adormecer, olhos e a boca carregados de maquiagem surgiam
a sua frente. Então acordava e praguejava contra aquela mulher que o torturara.
Se pudesse a mataria de novo.
Uma única vez sonhou com o corpo
forte do rapaz, os dois riam de alguma piada em um sonho reconfortante. Acordou
assustado, como se os outros sete companheiros da cela soubessem de seus
pesadelos. E todos dormiam, e todos sabiam. As dores no corpo voltaram a
incomodar.
No caminho para o pátio, Paulo
olhava com indiferença os corredores e os funcionários armados. Ao ser atingido
pela intensa luminosidade do espaço entre as galerias, lembrou a última vez que
percorreu o caminho de volta do trabalho, com o martelo na mão e ódio
suficiente para as dezenove marteladas desferidas na cabeça daquela bruxa. O
fraco sol de inverno era incapaz de diminuir o frio em seu corpo.
Naquele ambiente, ele se sentia
exilado do mundo humano, mas também pensava que já vivia em exílio muito tempo
antes, controlando olhares e desejos e sentindo o risco constante de ser
humilhado. Temor concretizado com a chegada daquela mulher.
Um conjunto de cartas, copas e espadas.
Ele conhecia canastra, mas não aquele jogo. Dependia dela e de suas palavras.
Não sabia por que fora procurá-la. Todos no bairro falavam de seus poderes. Que
poderes ela teria para ele? Já na primeira vez ficou impressionado. Em meio a
baforadas de charuto ela falou de seu isolamento, de sua solidão, sem que ele
precisasse dizer qualquer palavra. Saiu de lá sentindo ter-se encontrado.
Na cela, Paulo evitava olhar para os
outros presos. Não que isso evitasse as surras. Às vezes, evitava as curras.
Mas nada o fazia esquecer o rapaz que haviam colocado como seu ajudante na
obra. Última lembrança de vida que tinha; os dois compartilhando trabalho,
interesses e sexo, em um encontro inédito para ele.
A vida continuou dividida, mas um pouco
mais fácil ou mais interessante. Até aquela feiticeira resolver destruí-lo. Em
seu itinerário de ida e volta do trabalho ela sempre estava no portão, no
início um sorriso enigmático. Um dia o convidou a entrar, falou que ele estava
carregado, precisava de um passe. Depois as cartas. Paulo olhou para a boca
vermelha e ouviu:
-
Você tem uma pessoa especial em sua vida. Um rapaz jovem, moreno...negro.
Quem havia contado para ela? Aquela
mulher era o demônio? Só podia ser uma vaca de uma cigana, uma macumbeira!
Confuso, disse que tinha um filho, todos no bairro sabiam que ele tinha um
filho. Era perfeitamente crível que o rapaz especial fosse seu filho. Foi
embora apressado. Com o passar das horas se acalmou. Pura coincidência. Ela não
tinha como saber.
Paulo lembrou o dia em que chegou
preso. Todos sabiam. Ele não fazia ideia de como isso era possível, mas no
presídio todos sabiam. A diferença era que ele não se importava mais.
No início, a macumbeira foi sutil,
apenas um pequeno sorriso. Depois, uma frase fora de contexto:
-
A tua mulher não te dá o que tu gosta, né? - e deu uma gargalhada de vagabunda.
Paulo mudou o caminho que fazia para
não passar em frente da casa dela, mas moravam na mesma rua, nem sempre era
possível evitá-la. Na maior parte das vezes ela não falava nada, o mais comum
era um olhar zombeteiro. Apesar disso, vivia tenso, como um condenado a uma desgraça
iminente.
-
Tu não vem mais aqui? Eu tenho mais algumas coisas pra te dizer. Algumas até
acho que tu ia gostar.
Não parou, tentando passar rápido em seu
caminho para o trabalho, mas ela continuou:
-
Que pressa! Acho que este trabalho está te sugando demais. Tenho que ir lá ver
em quem tu tá trabalhando.
Não suportava mais o deboche e a
risada diabólica, mas a partir de então escutou algo mais, uma ameaça. Trabalhou
o dia inteiro. Quase não falou com o rapaz. No final do dia, saiu da obra carregando
o martelo.
Paulo olhava as paredes cheias de
bolor enquanto uma nova imagem surgia em sua mente. No interlúdio entre os
gritos e o próprio choro, nas sessões de terror que vivia, imaginava-se com uma
marreta nas paredes decrépitas que o continham.