quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Leitura crítica de Eliane Marques - Vozes de Retratos Íntimos

 




Quando os equívocos fazem a história*

Em "Vozes de Retratos Íntimos", Taiasmin Ohnmacht arma um álbum infamiliar para perpetuar parte da história amefricana
Em A Pobreza Ancestral, Georgina Herrera nos diz que, na sua casa, eram tão pobrezinhos que nunca houve dinheiro para os retratos. Os rostos familiares se perpetuaram em conversas. Agora, em Vozes de Retratos Íntimos (editora Taverna), Taiasmin Ohnmacht arma um álbum infamiliar para perpetuar parte da história amefricana. Assim como os retratos de Herrera, o álbum Ohnmacht é mais coro de vozes do que propriamente de imagens. Taiasmin é a corifeia. Ou eu deveria dizer griô?
Um equívoco! Parece que tudo nasce sempre de um equívoco. Seu ancestro, um alemão bravo, que chegou ao Brasil na condição de infamiliar, carregava o sobrenome Ohnmacht. Quando em Porto alegre, viu muitos homens pretos trabalhando. Isso lhe parecia a repetição da cena de que participara ao chegar na costa sul da África, quando, pela vez primeira, se sentiu valorizado. E branco, diz a narradora, que se anima a participar da cena com o avô equivocado.
O velho que, por equívoco, já havia feito do ferro de passar roupa instrumento para matar recebe do alemão que o recepciona outra arma, agora para se defender dos animais e dos selvagens. Ao perceber que esses são ou pertencem ao povo desapropriado do chão e da vida, como ele, em parte, fora desapropriado, não ficou a tempo de sujar suas mãos no genocídio dos hereros – prometera não mais violentar ninguém. Teria sido um equívoco seu a viagem para a costa sul-africana?
A palavra infamiliar é utilizada aqui no sentido de estrangeira ou de estrangeiro de dentro. O nome Ohnmacht talvez seja o primeiro infamiliar a saltar da foto para mirar a cara da narradora e lhe indagar, com a severidade de sua ancestra Antônia – como uma mulher que se reconhece como Negra pode carregar um sobrenome assim, uma verdadeira pedra de Sísifo? Não lhe seria mais fácil carregar um nome que se assentasse melhor com a pedra de Xangô?
Ohn.macht Sf, 1 impotência, fraqueza, debilidade. 2. Desmaio. In Ohnmacht fallen desmair. Esse o significado do sobrenome encontrado pela narradora num dicionário alemão-português. Parece que ela foi buscar uma fonte de certeza não do significado do seu sobrenome, mas sim do motivo pelo qual os oráculos (gregos ou iorubantos) impuseram a ela a história em que brancos negros e indígenas acreditaram num equívoco – o de que seu avô era um alemão bravo, quando ele não era nem alemão e nem parecia bravo. Porém, digo que a única debilidade de Ohnmacht, a Taiasmin, foi a habilidade de fazer de um equívoco literatura. E boa literatura.

Eliane Marques é escritora, poeta e editora.

*Texto originalmente publicado no jornal Zero Hora (01/10/2021)

VOZES DE RETRATOS ÍNTIMOS (ROMANCE)

 





Em Vozes de retratos íntimos, primeiro romance de Taiasmin Ohnmacht, acompanhamos como o racismo se entrelaça às memórias familiares
A partir da contemplação de fotografias da família, a narradora-personagem de Vozes de Retratos Íntimos tece a trajetória da sua cor e do seu sobrenome, evidenciando como o racismo se encrusta na história brasileira. A reconstituição de memórias empreendida na obra, que traz traços autobiográficos, expõe as marcas sociais com que se deparam os brasileiros ao abrir um álbum de família em que está presente o corpo negro ao lado do corpo branco.

Acompanhamos pela voz da personagem fatos históricos a partir de perspectivas distintas pela cor dos seus antepassados. A obra resgata a chegada dos primeiros precursores da família nos diferentes contextos de imigração e acompanha as sucessivas gerações até o presente. A partir dos caminhos dos personagens pela história brasileira, compreendemos a condição à margem da sociedade que o imigrante negro foi colocado diante do protagonismo dado a imigrantes brancos.

Romance: Vozes de Retratos ìntimos
Autora: Taiasmin Ohnmacht
Ano: 2021
Editora: Taverna

Livrarias: Taverna, Cirkula, Bamboletras, Traça.

Entregas para todo Brasil:
Pelo site https://livrariataverna.com.br/

quarta-feira, 28 de julho de 2021

TODOS OS DIAS

 


Taiasmin Ohnmacht

todos os dias

o vem e vai

filho em casa

filhos na vida

refeições, insulinas

recomendações

controles

medos

almoços e esquecimentos

quem se importa?

a professora da filha

que esqueceu o caderno de caligrafia

a professora do filho

que fingiu não ter prova de geografia

e eu sigo

de ônibus, lotação

táxi, a pé

sem celular - esqueci em casa

sem comer - não deu tempo

sem chaves - vou ficar na rua

SÓIS

 




Taiasmin Ohnmacht


Só não

era mais do que isso

so-zi-nha

assim, no feminino


Um dia fui sozinha


um dia

antes do olhar

e da pele macia

hoje sóis

pontos luminosos conexos

pele em bronze

luz própria

AMANHECER

 


Taiasmin Ohnmacht

seguro o sol incerto da manhã

a madrugada embaraçou meus cabelos

em nuvens de sonhos e pensamentos

quarta-feira, 2 de junho de 2021

MATÉRIA DO HORROR

 



Taiasmin Ohnmacht

A coisa abre mais que a boca, abre a goela. Um tubo indigesto de se olhar e mesmo assim hipnotizante. A coisa convida, é faminta e promete matar a fome de seu convidado ao mesmo tempo em que se sacia.

A coisa é sedutora e insidiosa. Ela promete a calma da digestão, o abrigo da saciedade, os sonhos vazios.

É uma goela grande, abriga fácil um corpo adulto, mas é uma viagem solitária, apenas um por vez. E a coisa não é capaz de prometer companhia, nem mesma a sua, não possui qualquer noção de si mesma.

A coisa convida, caso a pessoa aceite, o passo seguinte é o nada. Para a coisa e para a pessoa.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

VOU DIRETO AO PONTO E O VIRGULO

 

Taiasmin Ohnmacht 

eu vou direto ao ponto

que me cala a boca

vais ter que suportar

minhas incertezas

vais ter que suportar

meus equívocos

não os usará mais

para me calar

vou direto ao ponto

e o virgulo

***

te adornas com meus olhos castanhos

olhos de mágoa

olhos de susto

te adornas com meu silêncio

sobre ele fazes ecoar tua fala

sobre ele amplia tua voz

te adornas com minha pele

porque marrom te cai bem

desde que adereço

te adornas com meus crespos

e cria teu lugar de sedas

fatias meu corpo

ignorando meus movimentos de trança

de trama

de rede

a tecer tua queda

a tecer minha liberdade

sexta-feira, 14 de maio de 2021

As sevícias de Pai Francisco

 Pai Francisco entrou na roda

Tocando seu violão

Tá-ram-ram-tam-tão

E vem de lá seu delegado

Pai Francisco foi pra prisão


Como ele vem

Todo requebrado

Parece um boneco

Desengonçado


Por que Pai Francisco foi preso? Por ser um líder espiritual de uma religião de matriz africana ou por tocar violão? 

Talvez pelos 2 motivos.

No início do século 20 tanto o samba quanto o violão nas mãos de negros eram considerados sinal de vadiagem, e davam cadeia.

Mas não bastou prender, foi preciso torturar. Tortura policial, violência de Estado cantada na voz de gerações de lindas criancinhas.

Tudo natural e corriqueiro como é pra quem hoje ainda não se choca com as chacinas nas favelas e comunidades do país. Brasil, meu brasileiro. O que vem depois? Desafio vocês a procurarem o significado de inzoneiro.

Mas tudo isso porque acordei com as sevícias impostas ao Pai Francisco tocando na minha cabeça. Não sei por qual motivo. Essa canção constava no meu livro de música na época do colégio, depois a reencontrei quando minha filha se tornou fã da galinha pitadinha e, sim, ela foi uma das lindas criancinhas ensinadas desde de cedo a nossa brasilidade instituída.

Mas faz anos que não escuto a música, por que agora?

Talvez porque ontem fui ao protesto contra a chacina no Jacarezinho, e fiquei um pouco preocupada que houvesse alguma repressão  policial, li que no dia anterior estudantes foram presos por protestarem contra o ministro da educação, e vou percebendo os riscos que corremos, cada vez mais. 

Ontem me entregaram um panfleto: "A polícia e os governos não nos protegem!" 

Pai Francisco nos ensina isso, desde criancinhas.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

AMORES DIGITAIS

 




Taiasmin Ohnmacht


I

eu escrevo e te tenho

mesmo quando não estás

quiseste sair

e eu fiquei me apegando

a palavras

que a barra de rolagem levou

 

II

o teu olhar é dissimulado

o meu, fugidio

bocas que se querem

e mentem

união

prazer

 

III

espero numa palavra

a saliva que não poderás me dar

que os teus dedos

se acomodem em meu corpo

ao digitarem a eterna pergunta:

“Como vai?”

 

IV

tentei te acomodar em mim

reduzi o passo

retardei a vida

para te esperar

tentei encontrar lugar

para o que seria o amanhã

contigo

mas o teu tempo

não é o meu

e nunca será

meu amigo