Taiasmin Ohnmacht
Todos os dias ele calçava
um sapato social preto. Nem sempre era o mesmo, tinha seis pares iguais.
Gostava de usar calças sociais e não imaginava outro sapato que combinasse
melhor com elas.
Edgar
tinha estilo. O mesmo, sempre. Camisas claras, calças escuras e sapatos pretos.
Era um homem cuidadoso, previdente. Não se importava que alguns o chamassem de
previsível. Assim ele era e ponto! A bem da verdade, tinha pouca sorte com as
mulheres, mas a maioria dos homens que conhecia tinham menos sucesso com o elas
do que gostavam de confessar.
Diariamente,
Edgar acordava na mesma hora, tomava banho na mesma hora, lia jornal na mesma
hora, enquanto seu intestino funcionava, sempre no mesmo horário. Chegava ao
cartório às oito horas, pontualmente, e deliciava-se em cumprir sua rotina de
conferir, carimbar e assinar. Às vezes, carimbar, conferir e assinar. Na mesa
ao lado, Patrícia. Ruiva, sorridente e simpática com todos. Edgar tinha dúvidas
se ela conferia alguma coisa. A julgar pelo número de vezes que levantava,
sentava e conversava com os colegas, ele suspeitava que ela arriscava-se a
apenas carimbar e assinar. No entanto, nada comentava. Não era do tipo de se
intrometer na vida dos outros. O problema é que a vida dos outros costumava
intrometer-se na dele.
O
dia começou igual a todos os outros até Edgar chegar ao trabalho. Estranhou
grande parte dos colegas reunidos ao redor da máquina de café. O clima pesado
era óbvio.
- Tu não soube, Edgar? A mãe da Zuleika
morreu.
Zuleika,
a moça da limpeza. Pobre Zuleika, pensou.
- A gente tá fazendo uma vaquinha para
ajudar no enterro. Sabe como é, momento difícil...
Pobre
mesmo! Edgar pensou na indignidade da situação. A mãe morre e a filha ainda tem
que se endividar para o enterro. Existe coisa pior?
- A família até conseguiu um jazigo, o
problema são os serviços funerários.
Edgar
sentiu um frio na barriga. Há muitos anos pagava mensalmente um jazigo eterno,
mas nunca havia pensado nos serviços funerários. Como deixou esse detalhe
passar? A morte pode chegar a qualquer momento, não deveria estar desprevenido.
Edgar abriu a carteira, tirou a maior nota que tinha como sincera contribuição
e foi para sua mesa trabalhar. Na hora do almoço, enfrentou o calor de fevereiro
com sua calça preta e o sapato social. No restaurante de sempre, Patrícia e
outros dois colegas o encontraram já no meio da refeição. Edgar não teve outra
opção senão convidá-los a sentarem. Ele gostava de almoçar sozinho com seus
pensamentos. Comer era uma atividade de suma importância para o bom
funcionamento da saúde e fazia questão de prestar atenção nas cores que comia e
na ordem que elas eram conduzidas ao seu aparelho digestivo, mas naquele dia
não teve jeito, foi obrigado a escutar Patrícia. Animada, falava sem parar
sobre os vários bailes de carnaval aos quais iria na praia, durante o feriado.
Edgar nunca teve interesse por carnaval, gostava de Patrícia, mas tinha
assuntos mais importantes para resolver.
Naquela
semana, visitou várias funerárias. Descobriu modelos de caixão inusitados, com
madeiras entalhadas e cetins deslumbrantes. Ouviu explicações
interessantíssimas sobre maquiagem pós morte, na qual, enfim, a pessoa
encontrava a sua melhor aparência. Em alguns casos, melhor do que jamais tivera
em vida! Edgar começava a pensar até na possibilidade de frequentar alguns
velórios para pegar dicas e recomendações de funerárias. Isso, até entrar na
funerária Encontro Certo. Lá foi recebido por uma vendedora tão lúgubre quanto
o negócio com o qual trabalhava. Toda de preto e pálida, escutou as perguntas
de Edgar com respeitoso silêncio. Abriu uma gaveta com movimentos quase
cerimoniais. De lá, tirou um álbum com capa forrada de veludo roxo.
- O senhor veio ao lugar certo. Olhe estas
fotos e verás que o nosso trabalho é de pura arte.
Edgar
abriu o álbum também com alguma cerimônia. Seu coração bateu forte. Homens,
mulheres, velhos e jovens, até algumas crianças. Todos pálidos, olhos fechados,
rostos perfeitos, mas inertes. A morte dominava a cena em todas as fotos.
Ele
saiu zonzo da funerária. Era final da tarde de sexta, a cidade estava
esvaziando rumo às festas de Momo. Edgar chegou cedo em casa e descalçou os
sapatos pretos. Andou por um tempo no apartamento sem saber o que fazer com
tantos dias de folga pela frente. Até que não teve mais dúvidas. No armário,
pegou uma mala, não tinha muitas roupas para botar, teria que comprar algumas
pelo caminho. Iria de chinelo de dedo. Pegou o carro e foi para a praia.