terça-feira, 20 de dezembro de 2016

ENTRE NÓS



Taiasmin Ohnmacht


Em meu corpo dois mundos
África e Europa
Europa domina África
Europa subjuga África
Europa vende espelhos
Ignorantes de África

Em meu corpo dois mundos
África se derrama sobre Europa
Resistência: palavra e ritmo
Em meu corpo a revolta

Meu corpo em
Europa que não é Europa
Meu corpo em
África que não é África
Meu corpo novo mundo
Em disputa
Meu corpo revolução

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

BALADA DOS OHNMACHT

Resultado de imagem para bandolins
 
 
Taiasmin Ohnmacht
 
 
 
vem, meu irmão
vamos andando
não há lugar onde chegar
 
andando
estaremos indo a
algum lugar
 
os perigos da estrada
são a própria vida
 
vamos andando
meu irmão
vamos andando
 
todo lugar é porto
todo porto é partida
 
 


domingo, 15 de maio de 2016

FRONTEIRAS



Taiasmin Ohnmacht

Ainda estou aqui.
            Meu nome é Matheus, mas isso pouco importa, poderia ser Lucas, João ou qualquer outro.
            Não sei se alguém ainda se lembra de mim, mas eu me lembro de tudo e sigo faminto.
            Sentado na rua, olho o movimento de carros e pedestres, toco na calçada e sinto o piso gelado. Amo sentir esse frio. O cheiro de chão é uma mistura de terra, cimento e excrementos de tudo o que é vivo. A vida habita o solo. Quando criança, cavava buracos em busca de minhocas. Hoje há um determinado pedaço de chão no mundo onde, se cavar, vou encontrar minha derradeira face, e ela é a própria morte.
            Ando a esmo pelas ruas, não busco rostos conhecidos, mas quaisquer rostos que me sejam simpáticos e tenham um pouco de calor humano para compartilhar comigo. Mantenho distância dos deprimidos, a morte neles é maior do que em mim. E se o nada neles me aprisionar, me exilar da morte que conheço e me tornar uno com eles, uma massa disforme morta-viva?
            Não. Prefiro o mundo dos loucos que andam por aí acreditando que tudo vai fazer sentido no próximo beijo, na próxima festa, na próxima promoção. Aqueles que acreditam que a vida vai se realizar plena ao fim de cada pai-nosso, de cada aleluia. Credo!
            Estou morto o suficiente para reconhecer a vida. Sei que eles vão seguir por aí alienados, até o momento em que a terra abrir a boca para digerir suas mortes. Mas até lá seus dias estarão abarrotados de sensações e emoções. Os sigo para mais uma vez ver e sentir, pois quando vivia havia as cores intensas e a voz infantil dos meus filhos no quarto ao lado, e a dor da saudade é tudo o que resta sem a ajuda dos vivos.
            Sigo a pessoa por um tempo, respiro com ela, vejo com ela, mas às vezes quero mais. Então enguiço um carro para provocar uma caminhada ao sol, para aproveitar melhor as cores do dia. Atraio cães de rua que nos cheiram e fazem cócegas na pele. Estrago a bateria do celular, derrubo a rede para liberar olhos e ouvidos. Provoco encontros estranhos, paixões prementes. Porque a vida é essa que acontece enquanto se olha para outro lugar.
            Da morte não há nada que mereça ser contado. Apenas muito desejo de vida. Dizem que reencarnação existe. Não sei. Por aqui vejo os mesmos mortos de sempre, nenhum desapareceu sem explicações. E explicação é aquilo que os vivos usam para arrefecer a vida.
            Já fiz a minha escolha: criar alguns obstáculos no cotidiano dos que pulsam e não sabem, para que pulsem um pouco mais. E que eu pulse com eles.

Foto: Renata Stodulski

Tags: conto morto-vivo

sexta-feira, 15 de abril de 2016

TRAÇOS




Taiasmin Ohnmacht

Visto tua roupa
Ganho teus traços
Moldo meu corpo e meu abraço
E o que importa é o vazio de tua forma
Onde me encaixo.

terça-feira, 12 de abril de 2016

POST MORTEM




Taiasmin Ohnmacht





Todos os dias ele calçava um sapato social preto. Nem sempre era o mesmo, tinha seis pares iguais. Gostava de usar calças sociais e não imaginava outro sapato que combinasse melhor com elas.

            Edgar tinha estilo. O mesmo, sempre. Camisas claras, calças escuras e sapatos pretos. Era um homem cuidadoso, previdente. Não se importava que alguns o chamassem de previsível. Assim ele era e ponto! A bem da verdade, tinha pouca sorte com as mulheres, mas a maioria dos homens que conhecia tinham menos sucesso com o elas do que gostavam de confessar.

            Diariamente, Edgar acordava na mesma hora, tomava banho na mesma hora, lia jornal na mesma hora, enquanto seu intestino funcionava, sempre no mesmo horário. Chegava ao cartório às oito horas, pontualmente, e deliciava-se em cumprir sua rotina de conferir, carimbar e assinar. Às vezes, carimbar, conferir e assinar. Na mesa ao lado, Patrícia. Ruiva, sorridente e simpática com todos. Edgar tinha dúvidas se ela conferia alguma coisa. A julgar pelo número de vezes que levantava, sentava e conversava com os colegas, ele suspeitava que ela arriscava-se a apenas carimbar e assinar. No entanto, nada comentava. Não era do tipo de se intrometer na vida dos outros. O problema é que a vida dos outros costumava intrometer-se na dele.

            O dia começou igual a todos os outros até Edgar chegar ao trabalho. Estranhou grande parte dos colegas reunidos ao redor da máquina de café. O clima pesado era óbvio.

- Tu não soube, Edgar? A mãe da Zuleika morreu.

            Zuleika, a moça da limpeza. Pobre Zuleika, pensou.

- A gente tá fazendo uma vaquinha para ajudar no enterro. Sabe como é, momento difícil...

            Pobre mesmo! Edgar pensou na indignidade da situação. A mãe morre e a filha ainda tem que se endividar para o enterro. Existe coisa pior?

- A família até conseguiu um jazigo, o problema são os serviços funerários.

            Edgar sentiu um frio na barriga. Há muitos anos pagava mensalmente um jazigo eterno, mas nunca havia pensado nos serviços funerários. Como deixou esse detalhe passar? A morte pode chegar a qualquer momento, não deveria estar desprevenido. Edgar abriu a carteira, tirou a maior nota que tinha como sincera contribuição e foi para sua mesa trabalhar. Na hora do almoço, enfrentou o calor de fevereiro com sua calça preta e o sapato social. No restaurante de sempre, Patrícia e outros dois colegas o encontraram já no meio da refeição. Edgar não teve outra opção senão convidá-los a sentarem. Ele gostava de almoçar sozinho com seus pensamentos. Comer era uma atividade de suma importância para o bom funcionamento da saúde e fazia questão de prestar atenção nas cores que comia e na ordem que elas eram conduzidas ao seu aparelho digestivo, mas naquele dia não teve jeito, foi obrigado a escutar Patrícia. Animada, falava sem parar sobre os vários bailes de carnaval aos quais iria na praia, durante o feriado. Edgar nunca teve interesse por carnaval, gostava de Patrícia, mas tinha assuntos mais importantes para resolver.

            Naquela semana, visitou várias funerárias. Descobriu modelos de caixão inusitados, com madeiras entalhadas e cetins deslumbrantes. Ouviu explicações interessantíssimas sobre maquiagem pós morte, na qual, enfim, a pessoa encontrava a sua melhor aparência. Em alguns casos, melhor do que jamais tivera em vida! Edgar começava a pensar até na possibilidade de frequentar alguns velórios para pegar dicas e recomendações de funerárias. Isso, até entrar na funerária Encontro Certo. Lá foi recebido por uma vendedora tão lúgubre quanto o negócio com o qual trabalhava. Toda de preto e pálida, escutou as perguntas de Edgar com respeitoso silêncio. Abriu uma gaveta com movimentos quase cerimoniais. De lá, tirou um álbum com capa forrada de veludo roxo.

- O senhor veio ao lugar certo. Olhe estas fotos e verás que o nosso trabalho é de pura arte.

            Edgar abriu o álbum também com alguma cerimônia. Seu coração bateu forte. Homens, mulheres, velhos e jovens, até algumas crianças. Todos pálidos, olhos fechados, rostos perfeitos, mas inertes. A morte dominava a cena em todas as fotos.

            Ele saiu zonzo da funerária. Era final da tarde de sexta, a cidade estava esvaziando rumo às festas de Momo. Edgar chegou cedo em casa e descalçou os sapatos pretos. Andou por um tempo no apartamento sem saber o que fazer com tantos dias de folga pela frente. Até que não teve mais dúvidas. No armário, pegou uma mala, não tinha muitas roupas para botar, teria que comprar algumas pelo caminho. Iria de chinelo de dedo. Pegou o carro e foi para a praia.




segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

PARA DIZER ADEUS



Taiasmin Ohnmacht




Eu não quero escrever. Não quero contar sobre teus olhos castanhos ou sobre teus lábios macios. Ainda moras em mim, meu ventre ainda grita por ti, ainda sou a outra em que me transformaste.

Meu nome é Helena Gaia, e digo isso para não romper completamente com quem fui até te conhecer. Digo isso para sustentar a ponte entre dois mundos nos quais me esgarço e me perco.

Tenho a garganta cheia de palavras.

Acabou-se o tempo das certezas, tudo o que foi encontro um dia, acabou-se.

E como chamar-te, meu...?

O que dizer de quem ainda está tão dentro de mim? Ator de uma ausência/presença absurda.

Tenho tanto a dizer e já disse, mas diria de novo e muitas vezes, com sussurros embriagados de amor e de porra, se isso garantisse que voltarias. No entanto, levanto um brinde ao teu silêncio sempre calculado, estratégico.

Gostaria de saber que mentiras te contas. Eu as ouviria e gargalharia alto e me apaixonaria ainda mais porque conheceria a ti e a teu medo, conheceria tuas verdades e teus abismos e mentiria para mim mesma, acreditando em te ter por inteiro.

Não posso dizer que era feliz antes de ti, mas a vida fazia mais sentido. A tua chegada deslocou-me de meu mundo.
II
Chego em casa às 7 da noite. Ascendo as luzes e coloco música. Tento dar ao apartamento uma ficção de vida, algo que não tenho nem em mim. Às 8, acompanho Elis Regina chorar ao microfone. Ela ao microfone, eu em cima do prato que preparo para aquecer ao forno. Às 9, com Chico Buarque, juro que passo bem e que serei feliz. Cochilo às 10 e acordo à uma da manhã, pura angústia, nenhum traço de sono ou do sonho que só deixou por rastro o medo do tamanho da madrugada.
Preciso pensar, preciso pensar e não me resta outro caminho que não seja lembrar e me conto a única história de ninar possível:

ele chegou em um dia de temporal, e era verão. O barulho alto da chuva na rua fez com que me demorasse ainda mais na loja de sebos. Eu vasculhava os livros, ele buscava abrigo. Nossa primeira conversa foi entre três, nós e o dono da loja. A água despencava do céu e estávamos ilhados. Faltou luz e o dia precocemente escurecido fez com que o encanto da voz me levasse à curiosidade pelos traços do rosto. Não falamos sobre livros, descobri rapidamente que ele só fazia leituras breves e virtuais. A música foi o assunto que semeou nossa conversa e que nos levou até o fundo do sebo para o acervo de discos de vinil.
 A chuva passou e o abriguei em meu apartamento. O amor foi faminto, feito de sexo e discos espalhados pelo chão. E depois daquele encontro houve outros, todos os dias, por muitos dias. Quantos? Todos com a promessa de apresentarmos nossos mundos um para o outro, de compartilhar tudo, pois cada vez mais nos confundíamos, pensamentos e alma.
III
Agora, olhando para o mesmo chão que recebeu o calor de nosso amor, deitada na cama cúmplice de nossas longas conversas cheias de descobertas, sei que fui ingênua. Sei que acreditei demais. Mas também sei que não tem mais volta, que minha vida ignorando tua existência acabou. E isso é o inferno longe de ti.
Quantas vezes desapareceste, desde então? Tens sido uma efeméride, marcando o tempo de vida e de purgatório. Não, não me engano. Não é o paraíso que se opõe ao purgatório. É estar no aqui-agora, por escolha, vivendo as dores e delícias do momento, convicta de que nenhum outro lugar seria melhor. E eu não conheço outra definição para isso que não seja vida. Paraíso não existe, e te desejar me deu essa certeza. Isso eu aprendi; existe vida, purgatório e inferno.

 A fragilidade do mundo virtual não me ajuda. Me ingnoras com facilidade em bytes e pixels.

Sei o teu endereço e o teu telefone, mas do que adianta ir atrás de ti – e já fui – se ao te encontrar não te encontro para mim? Já me deixaste muito claro: és tu quem bate à porta, e não o contrário. Eu abro.
IV

O dia amanhece antes do meu sono, olho o céu azul e me pergunto como posso fazer para comparecer a minha vida? Às doze horas de ruas, transporte e escritório que tenho pela frente?

Não tenho sono, mas também não vejo propósito em me levantar da cama. Mesmo assim levanto. Tudo já está no chão; travesseiros, lençol e cobertor. Por que não eu?

Queria ser um objeto, existir apenas. Não me movimentar por mim mesma, ter por destino a permanência de formas e propósitos. E me deteriorar aos poucos, ou de uma vez, ou me perder em algum canto, sem consciência nem da morte, nem dos lugares.

O que deseja a almofada ou a cortina?

Amo e não sei quem sou. Amo? Essa toxicidade é amor?

Já mudei tantas vezes, mas agora mais do que mudei, me perdi. Dizem que toda mulher tem um quê de bruxa. A única certeza que tenho de mim é do meu caldeirão que ferve. Não digo que é bom ou mau. Não sei. Sei que ferve e me movimenta.

Sim, sou uma bruxa. Vou apostar no que sinto, vou apostar que um fio nos une. Amor? Destino? Loucura? Vou acreditar que me escutas, com o mesmo interesse que me escutava nas madrugadas nesta cama. Vou confiar que tua pele, teus pelos, teus órgãos, podem responder ao meu desejo, pelo simples fato que independem de teu raciocínio e necessitam de mim também. E vou gritar para esse ridículo céu azul que te quero. Vem! Me procura! Preciso de ti! Me escuta! Escuta a agonia de meu corpo! Mesmo que não queira, ainda que a distância seja grande, sinta minha fome de ti.
V

Tens os cabelos macios e amo o cheiro de tua pele. Choro sobre teu corpo adormecido e beijo e sinto o salgado de teu suor e de minhas lágrimas. Nada pode dar errado, chegaste porque escolheste chegar e transformaste meu mundo mais uma vez. Estamos juntos e meus cabelos foram teus, meus lábios, meu ventre, e meu corpo é teu e assim somos um do outro.

Amanheço em teus braços lambuzada de vida. Teu abraço, teu cheiro, mais uma vez amor. Estudo teu olhar e teu sorriso. Sim, estás aqui, sem prazo de validade.

Tomamos café e nos tragamos de várias formas. Temos todo um final de semana pela frente.

Pedes desculpa e se retira para um canto. Fumas, eu não, mas divido um cigarro contigo, ainda lido mal com a menor distância. Olhamos pela janela a fumaça se projetar pelo ar, e andares abaixo transeuntes na rua. Sou mais afortunada que qualquer um deles. Sou A escolhida pelo amor.

Observo que formigas começam a invadir a cozinha. Pequenas e açucareiras. Não, hoje não vou me preocupar com as formigas, penso comigo. Podem assaltar meus potes, contrabandear os restos de comida. Elas só vêm porque tem fartura na casa. Disso eu sei. Também estou me refestelando.

A vida segue tranquila. Cumprimento os conhecidos na rua com sinceros “tudo bem”. Se for algum amigo, paro e compartilho a felicidade de amar. No trabalho sou condescendente com o mau humor, encaro a todos com um olhar cristão. Eu sei o que é o amor. Eu amo e sou amada. Sei que é raro. Perdoai-os pai, eles não sabem o que fazem. Meu amor é egoísta, mas também sobra. Não há como definir. Me tornei tão generosa que divido o que tenho até com as formigas. Tudo o que tenho, mas não a ti. Não te divido, és o meu sol, é de ti e por ti que emana esse amor. O resto da humanidade que se contente com os reflexos.
VI 
Olhas pela janela e o cristal líquido reflete teus olhos. As minhas lágrimas são invisíveis. Adormeci com tua mudez, amanheci com tuas dúvidas.

Estás me preparando para tua partida. Não tens mais certeza deste ser teu lugar. Tens outros interesses, talvez um único outro interesse. Uma mulher. Negas ser outra pessoa, titubeia, desdiz, afirma o contrário. Certeza, só a minha do inferno que se anuncia.
Agora estás quieto na cama. Tu e o celular. Maldito 3G, 4G. Desgraçada Gaia, a grande Gaia que nunca encontrou um porto seguro e se mantém do jeito que pode, sozinha e aos tropeços.

Não suporto o silêncio que não seja da calma, entre nós o que há é um poço sem fundo e nossos corpos jazem à beira, pasmados de não entender. Eu me assusto e tu foges por entre espelhos. Mas desta vez vou segurar tua mão, ainda que seja apenas carne e osso, porque o essencial de ti escapa ampulheta abaixo e me recusas reconhecimento. Dizes-me que partirás. O pão? O vinho? Meu corpo? Um cálice de sangue.

Não, não vais. Vou segurar tua mão até minha morte, até criar coragem e fazer da queda livre minha vida, até te arrastar para tudo o que não sou e preciso ser. Sem volta para mim e para ti.

Sei tudo sobre perder, nunca desejei saber tanto.

Meu amor, me esconde em tua mão como quem cuida de um pássaro ferido. Beije a minha fera, cicatrize a minha fera e a ponha para dormir.
VII


Acordo sem sonhar e não estás ao meu lado. O pequeno apartamento me permite dominar todas suas entranhas com apenas um olhar, mas as paredes emudecem e confirmam tua ausência. Se fossem desgraçadas como eu ficariam constrangidas em dar tal confirmação.

Rolo para teu lado da cama e busco teu cheiro, quero te recriar do quase nada que indica tua presença, geração espontânea do amor. Mas minhas lágrimas não são férteis o suficiente. O dia que começou com teu corpo suado ao meu lado, termina com o travesseiro manchado do sal de meus olhos.


VIII


Ando por aí. Todos os dias amanheço, faço compras, encontro com vizinhos no elevador e os cumprimento com a previsibilidade tácita dos humanos. Aquilo a que chamam de boa educação, eu chamo de maquinaria. Coloca minha maquinaria para funcionar e atendo telefonemas, preencho guias, leio contratos, converso com clientes.

 Desde há muito tempo sei que nada tem sentido, vou vivendo porque não sei fazer diferente, mas esse quebra-cabeças de peças impossíveis de encaixar nunca me assustou. Sempre me considerei mais lúcida, mais livre, por saber que ao final não vai se formar uma paisagem bonita e mesmo assim será o fim. O que me assusta é essa necessidade de te sentir, uma necessidade física que me faz querer inventar sentidos extras no meu corpo para te absorver. Meu.
Eu não era feliz antes de ti, mas pelo menos não vivia a vida dos dependentes.
Quero te ver, vou me ocultar por teus caminhos, começo a duvidar que existas. Como consegues viver sem mim? A noite chega, todas as horas do dia são uma referência a tua pessoa.

Não conseguirei dormir, na verdade, creio que morrerei. Estou sentindo uma palpitação forte, galopante. Preciso escrever uma carta de despedida e colocar a responsabilidade de minha morte em ti. Todos saberão e viverás com a culpa, e assim, estarei um pouco contigo, senão para nossa felicidade, pelo menos em teu martírio.

 Músicas não ajudam, me farão recordar de nossas conversas, dos momentos em que dançamos juntos pelo quarto, tudo será mais doloroso. Acabo cedendo, nada pode ficar pior. As janelas estão abertas e a voz de Bethânia me conduz ainda mais para o fundo do poço. Sem assassinatos, mas andando para encontrar o beijo frio da morte. As minhas janelas já estão abertas, Bethânia, o que faço? Espero os insetos entrarem para declararem o meu fim? As formigas trabalham em minha cozinha, mas pouco interesse têm pelo meu corpo.
IX
           

Contrariando previsões, amanheço. Um pouco mais tranquila, um pouco mais morta. E tu como estás? Tens interesse em saber de mim? Queres saber como estou? Apostas em quê? Dor? Indignação? Raiva?

Amor.

Ando muito só desde tua partida. Tenho sonhado contigo – e não sonhava antes. Desde que partiste ando enlutada, trajando vestidos coloridos para enganar minha dor. Procuro emudecer minhas entranhas, evitar que elas gritem o teu nome, porque respondes, sempre respondeste quando minha voz se cala e te chamo com tudo o que há de mais quieto em mim. Sei apenas que continuo bruxa, por onde quer que ande, continuo bruxa. E meu caldeirão ainda ferve.

E quero que venhas, mas não quero que respondas. Não quero voltar para a dissimulação das palavras, não quero voltar a procurar sentidos no silêncio. Quero o calor do teu corpo, ou não quero nada.
X

Já não penso na morte, vou retornando ao que sempre houve para mim; um quebra-cabeças que não pode ser perfeitamente montado. Ando pelo mundo e às vezes enxergo um perfil, uma cor, uma delicada luminosidade que me lembram de tua presença. Mas já sei ser uma presença vazia. Estou além da saudade. Nunca mais te vi e prefiro assim.

Mudei as cores das paredes e os móveis de lugar. Está leve transitar pela minha casa. O poço que não tinha fundo, era travessia. E agora sei apenas que passei, pouco me lembro do que ficou para trás. É manhã fria de outono, e acabo de me arrumar para um dia de trabalho. Abro a porta e saio para a vida.