terça-feira, 30 de julho de 2013

MUDANÇA DE DIREÇÃO


Taiasmin Ohnmacht 



Cristiano andava apreensivo. Não queria ir aquele jantar. Sentia-se caminhando para um fim não desejado. Deveria haver algum modo de ficar surdo de uma hora para outra, então não precisaria escutar a dureza das palavras.

            Enquanto caminhava para pegar o carro, repetia para si mesmo, como se fosse um mantra, que nada mudaria o fato dela ser sua mulher. Não sabia como encará-la. Pela manhã, vira apenas morte em seus olhos, nenhuma lágrima, nenhum abatimento, tampouco existia a versão em que ela lhe implorava para que ele não a deixasse. No fundo, sempre soube estar mais próximo das súplicas do que ela.

            Conduzia seu carro em curvas alternadas de vítima e algoz. Aclives de justificativas, declives de arrependimentos. Não, ele não conduzia nada, era ela quem dirigia, quem determinava todos os rumos. Com raiva, sentiu-se impotente; um menino sem o direito de gozar sua travessura. Algo dentro de si rebelou-se, mas logo foi abafado por saber-se incapaz de ficar sozinho. Podia desejar outras, não podia viver sem ela. Era um viciado na iminência brutal de não poder mais se dar ao consumo. Se isso acontecesse, não sabia o que sobraria de si.

            Cristiano começou a planejar um novo caminho, concordaria com tudo o que ela dissesse. Seria humilde, assumiria ter errado, daria a ela todo o direito à raiva, à vingança, até ao silêncio e, se fosse preciso pediria, suplicaria, choraria seu perdão. Contudo, não se tratava de uma estratégia, mas de uma necessidade.

            Tenso, entrou no restaurante. Ela já estava lá e, para seu espanto, parecia nervosa. Não havia sinal da deusa fria e distante que ele imaginara encontrar. Enfim, Cristiano começou a sentir-se um pouco mais confiante. Pediu ao garçom o vinho preferido deles e ao sabor do qual tantas noites haviam se amado. Ela evitava olhá-lo nos olhos e isso também lhe pareceu bom sinal. Ela não estava no controle. Mesmo assim, o discurso ainda era dela. Tudo bem, ele pensou, tinha até curiosidade.

- Cris, a gente está casado há muito tempo. Não é fácil pra mim também. Quando tu fala que o que aconteceu nada teve a ver com amor, eu acredito. Também tenho meus desejos e mesmo assim te amo. - comovido, Cristiano segurou as mãos dela, com carinho – Não sei como te dizer isso, espero que compreendas, mas...essa moça, será que ela aceitaria um ménage a trois?

            Cristiano ficou surdo.

terça-feira, 23 de julho de 2013

DE CONTABILIDADES E RISCOS


Taiasmin Ohnmacht
 
Diariamente
Acordar às 7:30, suado no verão e sem vontade de levantar no inverno.
 
Pela manhã:
 
Abrir as gavetas
Tirar as baratas
Olhar os e-mails
Ler contratos
Conferir
Carimbar
Assinar
 
Almoço: arroz, feijão, bife e salada. Às vezes, massa.
 
À tarde:
 
Abrir as gavetas
Tirar as baratas
Olhar os e-mails
Ler contratos
Conferir
Carimbar
Assinar
 
Em momentos de diversão, encontrava-se com os colegas nas comemorações da empresa ou conversas em mesas de bar. Então:
 
Problemas de trabalho
Aposentadoria
Fofocas de trabalho
Mudanças no trabalho
Aposentadoria
 
E ele contava os anos, somava os anos, diminuía os anos.
 
Aos 30 anos, jantar com a família. Aos 40, uma refeição leve. E o tempo amealhando conquistas, dissipando conquistas.
 
O homem das justas medidas cotidianas, à noite transbordava em ousadias e ânsias, cultivava abismos secretos, mas ao amanhecer postergava seu desejo de vida para um outro dia, talvez.
 
Até insinuar-se um intruso
 
Abrir gavetas, tirar as baratas, urinar, olhar e-mails, urinar, ler contratos, urinar, conferir, urinar, carimbar, urinar, assinar, urinar.
 
Aos 48 anos, refeição leve, sentir dor, tentar urinar, poucas gotas, vontade premente.
O glossário médico nomeou o intruso, instalado e resoluto.
 
Não havia mais tempo a contabilizar. Era dia ainda, mas saltou para seus abismos e deu paz às baratas.

domingo, 14 de julho de 2013

TREZENTAS ONÇAS E ALGUNS PENSAMENTOS


 
Taiasmin Ohnmacht

 

Conto escrito em 2012, em homenagem ao centenário da publicação do livro

 Contos Gauchescos de Simões Lopes Neto.

 

Muitos livros sobre a cama. Época de provas. Na escrivaninha, Cassandra se debruçava sobre um deles, em suas páginas figuras de estruturas cerebrais expostas. Quantas palavras a decorar! Córtex, lobo parietal, astrócitos.

Desanimada e pouco concentrada, Cassandra começou a divagar. Pensou no convite que recebeu de Mônica, colega de trabalho, para ir a um CTG. Não sabia dançar vanerão, xote ou qualquer dança típica, mas não era a primeira vez que ia a um baile gauchesco, sempre divertidos.

Lembrou-se de palavras como cusco, zaino, guaiaca e da professora Alice, exigindo a leitura de Simões Lopes Neto, ainda na época do colégio. Cassandra a odiou a cada palavra que não entendeu do texto. Chegou a pensar na possibilidade de não ler o conto. No entanto, foi insistindo, atropelando as palavras desconhecidas e buscando o contexto. De repente:

“(...) não senti na cintura o peso da guaiaca!”

Algo fisgou Cassandra.

“Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava (...)”

A leitura se tornou ávida e, paralela à desventura do personagem, ela foi lembrando-se de um momento da sua própria vida, quando reuniu o dinheiro de vários colegas e comprou comes e bebes para a comemoração de fim de ano. A sensação horrível e jamais esquecida de olhar para a carteira vazia no momento de pagar a conta. Confusão, pânico e vergonha.

Cassandra foi roubada, sempre suspeitou de algum colega do colégio mesmo. Em nenhum momento passou a ideia dramática do suicídio por sua cabeça, mas foi Pedro, seu pai, quem garantiu um final honroso ao caso, repondo o dinheiro roubado.

- Suicídio, cabeça, tiro...Ah, estruturas cerebrais! Onde eu estava com a cabeça? Preciso estudar. – pensou Cassandra.

A sua frente, focou novamente a anatomia que se apresentava em formas e termos estranhos.

Bom, na época, ela conseguiu terminar de ler o conto, e com prazer, o que era melhor. Pensou em quanto tempo não fazia uma boa leitura. Levantou, foi até a estante e encontrou o livro. Que boa sensação tê-lo nas mãos! Sabia que tinha de estudar, mas seria bem rapidinho. Afastou os livros técnicos, deitou na cama, ligou a luz de cabeceira e

“Eu tropeava, nesse tempo.”