Taiasmin Ohnmacht
“A escrita foi, em sua origem, a voz de uma
pessoa ausente”. Quando Freud traz essa frase em seu texto O mal estar na
cultura, em 1929, ele está elencando o desenvolvimento tecnológico e científico
como criações que são extensão ou substitutos sensoriais, motores ou mnêmicos,
como o telescópio, o microscópio, a fotografia. Mas esta frase, “A escrita foi,
em sua origem, a voz de uma pessoa ausente” poética a meu ver, traz um significante
que me inspira outras direções, e este significante é a palavra ausente.
A palavra ausente, a palavra que não está lá.
Já não é mais uma pessoa, mas restos de um encontro que não tem mais nome. Uma
lembrança que não tem mais rosto. Talvez essa seja a metonímia que anima o escritor,
a busca de uma palavra. A palavra que precisa ser escrita por que não está, e
que ao ser escrita, já não é mais a palavra buscada.
Mal estar, insatisfação, descontentamento. Em
psicanálise esse mal estar diz respeito a um sujeito que não é mais regido pela
natureza, para o qual não é mais possível um encontro mítico perfeito, passando
assim, à organização da cultura, às regras da linguagem que regula relações e
impõe restrições às formas de gozo, exigindo do sujeito renúncia à satisfação.
Dessa forma, encontramos um sujeito que é
sujeito por ter sido marcado pela relação com uma alteridade, que toma um corpo
e o marca com significantes. A esse sujeito é possível articular os signos
linguísticos e tornar-se autor, produtor de linguagem, mas de uma linguagem em
diálogo com a cultura. Um texto traz em si essas duas marcas: do sujeito e da cultura.
Em uma relação que não é plena de equilíbrio, nem totalmente realizada. Ela é
intermitente, padece de equívocos e de incompletude. Relação bem representada
nos versos de Mário de Sá-Carneiro:
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Esse outro que não encontro mais, e que nem sei
se é alguém. Talvez seja uma palavra, sempre a próxima, alguma que vá dar forma
ao sublime, ao inexprimível.
Aquele que cria através da literatura, cria
presenças, e a primeira presença que cria é a do leitor. Figura anônima, sem
rosto, intermitente, que repete presenças e ausências anteriores e a quem tudo
se supõe. O desejo por um outro, de um mundo que reconheça o valor da moeda que
o escritor oferece sem saber o quanto vale, parafraseando Clarice Lispector, em
paixão segundo GH.
É também Lispector que nos diz, o nada é vivo e úmido, como a matéria
branca da barata, e quem escreve sabe, porque algo se move, algo existe, ainda
que sem forma conhecida, e escrever é a experiência de criar um lugar singular
a este nada.
Para o
filósofo Jacques Rancière “Só um corpo vivo, um corpo que sofre, é capaz, em última instância, de
garantir a escrita” Podemos pensar aqui em um corpo afetado pelo que foi um
dia uma presença, pela presença que deixou de ser, ou melhor, pela presença de
uma ausência.
Embora no próprio texto o mal estar na cultura,
Freud vá falar da arte como sublimação, ou seja, como um modo de satisfação socialmente
valorizado para formas de gozo não admissíveis pela cultura, escolho seguir por
um texto mais antigo, de 1908, o poeta e o fantasiar em que o psicanalista
vienense aproxima a produção do escritor criativo ao jogo, à brincadeira
infantil. Atentemos que para Freud o brincar é coisa séria, uma atividade que
tece a realidade e o mundo com o fio do desejo. Assim também o faz o escritor
criativo, com os fios do próprio desejo a tecer suas fantasias ou entrelaçado
aos mitos, sagas, histórias de um povo, em uma imbricação entre o singular e o
compartilhável.
E é neste encontro entre o singular e o
compartilhável que também se dá o encontro entre texto e leitor. O leitor que
aceita o convite do escritor para adentrar em sua narrativa, aceita recriar a
história em termos próprios, em emprestar as tintas de sua subjetividade ao
texto que se desenrola aos seus olhos. O leitor restitui a vida ao texto a cada
leitura. Um texto é uma narrativa que se faz a muitas vozes, internas ao texto
e externas ao convocar à leitura.
A narrativa está ligada à temporalidade, não ao
tempo objetivo e mensurável, mas ao tempo humano, subjetivo, relacionado à
vivência, à experiência. Narrar é fazer escolhas, organizar, estabelecer
relações, não em uma atitude mensurável, mas dar estatuto de realidade ao que é
uma experiência subjetiva.
O tempo existe por nossa memória e nossas
expectativas, individuais e compartilhadas, e tais expectativas existem como
tal à medida que sejam passíveis de serem narradas.
Freud coloca a experiência do narrar em
estreita relação com o tempo, não um tempo linear, mas um tempo que se articula
com o desejo.
E não é assim que criamos a noção de tempo? Um
presente resultado de uma história, acessada apenas através de escolhas
narrativas, e expectativas marcadas por uma certa posição perante o desejo.
Desde Freud sabemos que a arte diz antes e melhor do que a ciência, assim trago
os versos da escritora Conceição Evaristo:
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes
– agora – o que há de vir (Eu-Mulher)
Segundo o psicanalista Edson Souza, é no mar da linguagem que nos afogamos ou
nos salvamos. Por que a linguagem é aquilo que não sou, mas também é a
única forma de me dizer. Ainda citando Edson: A literatura é uma espécie de formigueiro que areja a linguagem,
permitindo que novos lugares de enunciação sejam criados.
Frantz
Fanon, filósofo, psiquiatra e ensaísta martinicano, lembra que Falar é estar em condições de empregar um
certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo
assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.
Assim, chego a um outro mal estar, que não diz
mais respeito à ausência inexprimível, mas ao risco de uma presença
inquestionável. Diz de um certo encontro com a linguagem que suprime o espaço
da indeterminação, fixa lugares, estabelece enunciados rígidos, fechados e
hierarquicos sobre corpos e formas de vida. Aí reside a violência que desconsidera
o sujeito, a diversidade passa a ser puro objeto, indesejável.
Daí a importância de que a literatura seja
também uma perversão aos signos linguísticos carregados de estereótipos. O
escritor Roland Barthes faz um apelo à atividade de trapacear a língua, ou
seja, à literatura, entendendo-a não como os cânones, o sucesso do mercado
editorial, mas como uma prática: a prática de escrever.
Escrever é também esvaziar as palavras de
sentido, criar o sem sentido, em provocar equívocos, desconstruções,
significações em aberto, inaugurar novos sentidos.
A literatura é um trabalho, para o autor e para
o leitor. Um trabalho que é também um jogo, um jogo sério de peças que se movem
em torno de uma ausência, que garante o espaço de criação, não é, nem se propõe
a ser uma cura para o mal estar, é antes, uma experiência, que pode ser
inclusive de mal estar.
Quando
eu morder
A
palavra,
Por
favor,
Não me
apressem,
Quero mascar,
Rasgar
entre os dentes,
A
pele, os ossos, o tutano
Do
verbo
Para
assim versejar
O
âmago das coisas. (Da calma e Do silêncio, Conceição Evaristo)