Taiasmin Ohnmacht
Eu não quero escrever.
Não quero contar sobre teus olhos castanhos ou sobre teus lábios macios. Ainda moras em mim, meu ventre ainda grita por ti, ainda
sou a outra em que me transformaste.
Meu nome é Helena Gaia, e
digo isso para não romper completamente com quem fui até te conhecer. Digo isso
para sustentar a ponte entre dois mundos nos quais me esgarço e me perco.
Tenho a garganta cheia de
palavras.
Acabou-se o tempo das
certezas, tudo o que foi encontro um dia, acabou-se.
E como chamar-te, meu...?
O que dizer de quem ainda
está tão dentro de mim? Ator de uma ausência/presença absurda.
Tenho tanto a dizer e já
disse, mas diria de novo e muitas vezes, com sussurros embriagados de amor e de
porra, se isso garantisse que voltarias. No entanto, levanto um brinde ao teu
silêncio sempre calculado, estratégico.
Gostaria de saber que
mentiras te contas. Eu as ouviria e gargalharia alto e me apaixonaria ainda
mais porque conheceria a ti e a teu medo, conheceria tuas verdades e teus
abismos e mentiria para mim mesma, acreditando em te ter por inteiro.
Não
posso dizer que era feliz antes de ti, mas a vida fazia mais sentido. A tua
chegada deslocou-me de meu mundo.
II
Chego
em casa às 7 da noite. Ascendo as luzes e coloco música. Tento dar ao
apartamento uma ficção de vida, algo que não tenho nem em mim. Às 8, acompanho Elis
Regina chorar ao microfone. Ela ao microfone, eu em cima do prato que preparo
para aquecer ao forno. Às 9, com Chico Buarque, juro que passo bem e que serei
feliz. Cochilo às 10 e acordo à uma da manhã, pura angústia, nenhum traço de
sono ou do sonho que só deixou por rastro o medo do tamanho da madrugada.
Preciso
pensar, preciso pensar e não me resta outro caminho que não seja lembrar e me
conto a única história de ninar possível:
ele chegou em um dia de
temporal, e era verão. O barulho alto da chuva na rua fez com que me demorasse
ainda mais na loja de sebos. Eu vasculhava os livros, ele buscava abrigo. Nossa
primeira conversa foi entre três, nós e o dono da loja. A água despencava do
céu e estávamos ilhados. Faltou luz e o dia precocemente escurecido fez com que
o encanto da voz me levasse à curiosidade pelos traços do rosto. Não falamos
sobre livros, descobri rapidamente que ele só fazia leituras breves e virtuais.
A música foi o assunto que semeou nossa conversa e que nos levou até o fundo do
sebo para o acervo de discos de vinil.
A chuva passou e o abriguei em meu
apartamento. O amor foi faminto, feito de sexo e discos espalhados pelo chão. E
depois daquele encontro houve outros, todos os dias, por muitos dias. Quantos?
Todos com a promessa de apresentarmos nossos mundos um para o outro, de
compartilhar tudo, pois cada vez mais nos confundíamos, pensamentos e alma.
III
Agora, olhando
para o mesmo chão que recebeu o calor de nosso amor, deitada na cama cúmplice
de nossas longas conversas cheias de descobertas, sei que fui ingênua. Sei que
acreditei demais. Mas também sei que não tem mais volta, que minha vida
ignorando tua existência acabou. E isso é o inferno longe de ti.
Quantas vezes desapareceste, desde
então? Tens sido uma efeméride, marcando o tempo de vida e de purgatório. Não,
não me engano. Não é o paraíso que se opõe ao purgatório. É estar no
aqui-agora, por escolha, vivendo as dores e delícias do momento, convicta de
que nenhum outro lugar seria melhor. E eu não conheço outra definição para isso
que não seja vida. Paraíso não existe, e te desejar me deu essa certeza. Isso
eu aprendi; existe vida, purgatório e inferno.
Sei o teu endereço e o teu telefone,
mas do que adianta ir atrás de ti – e já fui – se ao te encontrar não te
encontro para mim? Já me deixaste muito claro: és tu quem bate à porta, e não o
contrário. Eu abro.
IV
O dia amanhece antes do meu sono,
olho o céu azul e me pergunto como posso fazer para comparecer a minha vida? Às
doze horas de ruas, transporte e escritório que tenho pela frente?
Não tenho sono, mas também não vejo
propósito em me levantar da cama. Mesmo assim levanto. Tudo já está no chão;
travesseiros, lençol e cobertor. Por que não eu?
Queria ser um objeto, existir
apenas. Não me movimentar por mim mesma, ter por destino a permanência de
formas e propósitos. E me deteriorar aos poucos, ou de uma vez, ou me perder em
algum canto, sem consciência nem da morte, nem dos lugares.
O que deseja a almofada ou a
cortina?
Amo e não sei quem sou. Amo?
Essa toxicidade é amor?
Já mudei tantas vezes, mas agora
mais do que mudei, me perdi. Dizem que toda mulher tem um quê de bruxa. A única
certeza que tenho de mim é do meu caldeirão que ferve. Não digo que é bom ou
mau. Não sei. Sei que ferve e me movimenta.
Sim, sou uma bruxa. Vou apostar no
que sinto, vou apostar que um fio nos une. Amor? Destino? Loucura? Vou
acreditar que me escutas, com o mesmo interesse que me escutava nas madrugadas
nesta cama. Vou confiar que tua pele, teus pelos, teus órgãos, podem responder
ao meu desejo, pelo simples fato que independem de teu raciocínio e necessitam
de mim também. E vou gritar para esse ridículo céu azul que te quero. Vem! Me
procura! Preciso de ti! Me escuta! Escuta a agonia de meu corpo! Mesmo que não
queira, ainda que a distância seja grande, sinta minha fome de ti.
Tens os cabelos macios e amo o
cheiro de tua pele. Choro sobre teu corpo adormecido e beijo e sinto o salgado
de teu suor e de minhas lágrimas. Nada pode dar errado, chegaste porque
escolheste chegar e transformaste meu mundo mais uma vez. Estamos juntos e meus
cabelos foram teus, meus lábios, meu ventre, e meu corpo é teu e assim somos um
do outro.
Amanheço em teus braços lambuzada de
vida. Teu abraço, teu cheiro, mais uma vez amor. Estudo teu olhar e teu
sorriso. Sim, estás aqui, sem prazo de validade.
Tomamos café e nos tragamos de várias
formas. Temos todo um final de semana pela frente.
Pedes desculpa e se retira para um
canto. Fumas, eu não, mas divido um cigarro contigo, ainda lido mal com a menor
distância. Olhamos pela janela a fumaça se projetar pelo ar, e andares abaixo
transeuntes na rua. Sou mais afortunada que qualquer um deles. Sou A escolhida
pelo amor.
Observo que formigas começam a
invadir a cozinha. Pequenas e açucareiras. Não, hoje não vou me preocupar com
as formigas, penso comigo. Podem assaltar meus potes, contrabandear os restos
de comida. Elas só vêm porque tem fartura na casa. Disso eu sei. Também estou
me refestelando.
A vida segue tranquila. Cumprimento
os conhecidos na rua com sinceros “tudo bem”. Se for algum amigo, paro e
compartilho a felicidade de amar. No trabalho sou condescendente com o mau
humor, encaro a todos com um olhar cristão. Eu sei o que é o amor. Eu amo e sou
amada. Sei que é raro. Perdoai-os pai, eles não sabem o que fazem. Meu amor é
egoísta, mas também sobra. Não há como definir. Me tornei tão generosa que
divido o que tenho até com as formigas. Tudo o que tenho, mas não a ti. Não te
divido, és o meu sol, é de ti e por ti que emana esse amor. O resto da
humanidade que se contente com os reflexos.
VI
Olhas pela janela e o cristal
líquido reflete teus olhos. As minhas lágrimas são invisíveis. Adormeci com tua
mudez, amanheci com tuas dúvidas.
Estás me preparando para tua
partida. Não tens mais certeza deste ser teu lugar. Tens outros interesses,
talvez um único outro interesse. Uma mulher. Negas ser outra pessoa, titubeia,
desdiz, afirma o contrário. Certeza, só a minha do inferno que se anuncia.
Agora estás quieto na cama. Tu e o
celular. Maldito 3G, 4G. Desgraçada Gaia, a grande Gaia que nunca encontrou um
porto seguro e se mantém do jeito que pode, sozinha e aos tropeços.
Não suporto o silêncio que não seja
da calma, entre nós o que há é um poço sem fundo e nossos corpos jazem à beira,
pasmados de não entender. Eu me assusto e tu foges por entre espelhos. Mas
desta vez vou segurar tua mão, ainda que seja apenas carne e osso, porque o
essencial de ti escapa ampulheta abaixo e me recusas reconhecimento. Dizes-me
que partirás. O pão? O vinho? Meu corpo? Um cálice de sangue.
Não, não vais. Vou segurar tua mão
até minha morte, até criar coragem e fazer da queda livre minha vida, até te
arrastar para tudo o que não sou e preciso ser. Sem volta para mim e para ti.
Sei tudo sobre perder, nunca desejei
saber tanto.
Meu amor, me esconde em tua mão como
quem cuida de um pássaro ferido. Beije a minha fera, cicatrize a minha fera e a
ponha para dormir.
VII
Acordo sem sonhar e não estás ao meu
lado. O pequeno apartamento me permite dominar todas suas entranhas com apenas
um olhar, mas as paredes emudecem e confirmam tua ausência. Se fossem
desgraçadas como eu ficariam constrangidas em dar tal confirmação.
Rolo para teu lado da cama e busco
teu cheiro, quero te recriar do quase nada que indica tua presença, geração
espontânea do amor. Mas minhas lágrimas não são férteis o suficiente. O dia que
começou com teu corpo suado ao meu lado, termina com o travesseiro manchado do
sal de meus olhos.
VIII
Ando por aí. Todos os dias amanheço,
faço compras, encontro com vizinhos no elevador e os cumprimento com a
previsibilidade tácita dos humanos. Aquilo a que chamam de boa educação, eu
chamo de maquinaria. Coloca minha maquinaria para funcionar e atendo
telefonemas, preencho guias, leio contratos, converso com clientes.
Desde há muito tempo sei que nada
tem sentido, vou vivendo porque não sei fazer diferente, mas esse
quebra-cabeças de peças impossíveis de encaixar nunca me assustou. Sempre me
considerei mais lúcida, mais livre, por saber que ao final não vai se formar
uma paisagem bonita e mesmo assim será o fim. O que me assusta é essa
necessidade de te sentir, uma necessidade física que me faz querer inventar
sentidos extras no meu corpo para te absorver. Meu.
Eu não era feliz antes de ti, mas pelo
menos não vivia a vida dos dependentes.
Quero te ver, vou me ocultar por
teus caminhos, começo a duvidar que existas. Como consegues viver sem mim? A
noite chega, todas as horas do dia são uma referência a tua pessoa.
Não conseguirei dormir, na verdade,
creio que morrerei. Estou sentindo uma palpitação forte, galopante. Preciso
escrever uma carta de despedida e colocar a responsabilidade de minha morte em
ti. Todos saberão e viverás com a culpa, e assim, estarei um pouco contigo,
senão para nossa felicidade, pelo menos em teu martírio.
Músicas não ajudam, me farão
recordar de nossas conversas, dos momentos em que dançamos juntos pelo quarto,
tudo será mais doloroso. Acabo cedendo, nada pode ficar pior. As janelas estão
abertas e a voz de Bethânia me conduz ainda mais para o fundo do poço. Sem assassinatos,
mas andando para encontrar o beijo frio da morte. As minhas janelas já estão
abertas, Bethânia, o que faço? Espero os insetos entrarem para declararem o meu
fim? As formigas trabalham em minha cozinha, mas pouco interesse têm pelo meu
corpo.
IX
Contrariando previsões, amanheço. Um
pouco mais tranquila, um pouco mais morta. E tu como estás? Tens interesse em
saber de mim? Queres saber como estou? Apostas em quê? Dor? Indignação? Raiva?
Amor.
Ando muito só desde tua partida.
Tenho sonhado contigo – e não sonhava antes. Desde que partiste ando enlutada,
trajando vestidos coloridos para enganar minha dor. Procuro emudecer minhas
entranhas, evitar que elas gritem o teu nome, porque respondes, sempre
respondeste quando minha voz se cala e te chamo com tudo o que há de mais
quieto em mim. Sei apenas que continuo bruxa, por onde quer que ande, continuo
bruxa. E meu caldeirão ainda ferve.
E quero que venhas, mas não quero
que respondas. Não quero voltar para a dissimulação das palavras, não quero
voltar a procurar sentidos no silêncio. Quero o calor do teu corpo, ou não
quero nada.
X
Já não penso na morte, vou
retornando ao que sempre houve para mim; um quebra-cabeças que não pode ser
perfeitamente montado. Ando pelo mundo e às vezes enxergo um perfil, uma cor,
uma delicada luminosidade que me lembram de tua presença. Mas já sei ser uma
presença vazia. Estou além da saudade. Nunca mais te vi e prefiro assim.
Mudei as cores das paredes e os
móveis de lugar. Está leve transitar pela minha casa. O poço que não tinha
fundo, era travessia. E agora sei apenas que passei, pouco me lembro do que
ficou para trás. É manhã fria de outono, e acabo de me arrumar para um dia de
trabalho. Abro a porta e saio para a vida.
É sempre muito bom te ler. Intenso.
ResponderExcluirHá pouco descobri teu blog. Tô em lágrimas com esse texto, encaixou certinho na minha vontade de extravasar sentimentos guardados. Obrigada pela tua escrita!
ResponderExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluir