Taiasmin Ohnmacht
− Não é isso que procuro. − folheia a
revista com desinteresse. – Quero algo que me adivinhe.
− Eu te adivinho.
− Tu não sabe de onde eu venho.
− Mas sei pra onde quero te levar.
Ainda sente o
cheiro dela em suas mãos. Enquanto aguarda o sinal verde, Samuel recorda os olhos
castanhos. Só os descobriu depois que uma das lentes de contato azul caiu
durante a transa. O corpo da jovem que chegou a sua loja procurando a Sétimo
Sentido e terminou nua ao seu lado em um quarto de motel, era bastante real. E
mesmo assim, inacreditável.
Pela primeira vez
percorre o caminho entre o estacionamento e o edifício aonde mora sem praguejar
contra a esposa e a escolha que ela fizera por um apartamento em edifício
antigo, sem vaga de garagem; tudo para morarem próximos ao colégio de João.
Anda a passos
lentos e despreocupados gozando o silêncio da noite e a rua vazia para reviver
a tarde que tivera. Voltaria a ver aquela mulher? Qual era mesmo o seu nome?
Não consegue lembrar, tem quase certeza de terem conversado apenas o suficiente
para confirmarem o desejo mútuo.
Ao aproximar-se da
porta de seu apartamento, escuta vozes estranhas. Quem os estaria visitando
àquela hora? Samuel só quer chegar em casa e se isolar. Estranha a dificuldade
em girar a chave. Silvia teria deixado a chave na fechadura pelo lado de dentro
para certificar-se da hora em que ele chegaria em casa? É ciumenta o suficiente
para tal artimanha. Espera e a porta é aberta por um menino. Não sabe quem é
aquela criança. Samuel vai entrando, o menino o olha assustado, a sala está
diferente. O que Silvia andara fazendo? Quando abre a boca para chamá-la, uma
voz feminina grita da cozinha:
− Gus, quem é na porta?
Gus? Que voz é
aquela? E Silvia? E João?
− Oi, sou eu. – Samuel falou um pouco
confuso.
Em seguida uma
mulher aparece na sala, puxa o menino para perto de si e pergunta:
− O que o senhor quer?
− Oi, eu sou o Samuel, marido da
Silvia. Onde ela está?
A mulher treme
levemente enquanto o menino se agarra a suas pernas.
− Não sei de quem o senhor está
falando. Deve ser algum engano. – Em seguida ela grita – Gerson!
Samuel recua até o
corredor e confirma o número 203, de seu apartamento. O mesmo 3 que ele arrumou
no dia seguinte à primeira noite dele e de Silvia na nova residência. Quando a
fome os obrigou a saírem da cama, resolveram ir a um pequeno restaurante na
mesma rua do edifício. Quando ele fechou a porta, percebeu que o 3 estava
pendurado apenas pela parte de baixo, virado como a escrita espelhada de uma
criança. Por muito tempo eles brincaram que veriam o 3 virado após cada noite
de amor. Com o passar dos anos, a brincadeira perdeu a graça.
− Qual é, cara! Não entendeu o que
minha mulher disse?
A voz grave o faz
voltar o olhar novamente para o interior do apartamento a tempo de ver um homem
com a aparência de quem recém acordou fechar a porta, Samuel, zonzo, ainda tem
forças para dizer que vai chamar a polícia, mas o homem, de dentro do
apartamento, grita de volta idêntica ameaça.
Samuel sai para a
rua em busca de ar fresco. Em frente ao edifício, olha para as janelas, todas
elas, dos três andares, olham para ele. Não reconhece um vizinho sequer.
Pergunta-se onde está, a própria rua lhe parece estranha.
Que horas são?
Madrugada, certamente. Diante de todos os acontecimentos e após a oitava
cerveja, o tempo é o que menos importa. Samuel está no bar vizinho ao prédio
(onde mora?). Olha para o celular ao lado do copo, espantado pela inutilidade
do aparelho em fazer ligações. A mensagem de número inexistente, quando tenta
ligar para o telefone fixo de sua casa e a voz mecânica de Silvia, pedindo para
deixar recado após o sinal, se tornam zombeteiras após a décima tentativa. Usa
o iphone para entrar no facebook, olha o perfil de Silvia, que foto era aquela?
Sim, é Silvia, mas ele não conhece a foto e algo captado por ela tornam aquela
uma outra mulher, não a sua. Tem a vaga sensação de ter visto aquele olhar, em
algum momento, mas não consegue recordar. De qualquer modo, não sabe descrever
a pessoa com quem convive. Silvia é alguém com quem divide o dia-a-dia, costuma
estar ali, eles facilitam a vida um do outro, mas agora ela não está e o mundo
é um caos.
Faz sinal a César,
pedindo mais uma lata de cerveja. Pelo menos no bar tudo continua igual, o
garçom é o mesmo e o reconhece. Volta a olhar intrigado para o celular, quando
sente um perfume feminino, ergue a cabeça e vê ela que lhe estende a lata de
cerveja e oferece um sorriso acolhedor. Samuel levanta-se da cadeira.
− Tu? Aqui?
Ela, sem dúvida, os
olhos castanhos. Fica olhando para ele, sem nada dizer. Samuel a convida para
sentar e beber.
− Eu não posso. – ela responde sem
desfazer o sorriso tranquilo, vira-se e sai do bar.
Samuel olha para
César; ela trabalha no bar? Espera que alguém a impeça de deixar o lugar, mas
César concentra-se em limpar as mesas recém liberadas. Decide correr atrás dela,
que já se afastou uns 200 metros. Fica espantado com a distância que ela
percorreu em tão pouco tempo.
− Vem comigo? – ela pergunta.
Não parece
necessário a Samuel responder, apenas caminha, tentando acompanhar o ritmo
rápido. Tem medo de que ela evapore a qualquer momento. A noite permite todo
tipo de dissolução. Ela chega ao carro estacionado na avenida, da zona leste
para a zona sul. As luzes e sombras da cidade e a velocidade do carro o
questionam sobre o tempo, mas as mãos dela no volante e no câmbio fazem com que
ele esqueça todas as perguntas. Não há conversa, apenas a confiança de que
existe algum lugar para onde ir.
Estacionam na praia,
Samuel não reconhece o local, desde criança não voltava àquela região da
cidade. Algumas vezes seu pai reunia a família para fazerem churrasco na praia
do Leblon. Naquela época, ele e seus dois irmãos desciam do fusca em algazarra
para banharem-se nas águas do Guaíba. Agora, ele escuta uma gira. Ela sai do
carro e vai em direção à areia, ele olha com mais atenção adiante e vê o
movimento de pessoas vestidas de branco próximas às águas do rio. Samuel a
segue, ela junta-se ao grupo e canta os pontos. Não está completamente escuro,
a iluminação da rua clareia um pouco a praia, a luz das velas contribui com o
clima mágico. Ela está ainda mais linda, mas não é a única, há outras mulheres
atraentes também. Uma parece estar incorporada. Dança e gira, com sua roupa
vermelha, parece uma cigana. Um grupo de três homens dançam ao seu redor. O
ritual é cheio de sensualidade. Samuel se aproxima do grupo. Silvia. Não é
Silvia, é Silvia. Sente-se tonto, talvez desmaie, talvez vomite.
Silvia/não-Silvia tem completo domínio do corpo e do ritmo, dança com confiança
e prazer. Nunca a viu assim antes. O que estão fazendo com ele? Isso é uma
armação? De quem? Ele se junta ao grupo e dança com a mulher – que pode ser a
dele – e a deseja como se não fosse sua.
Alguém o segura
firme pelo braço – Ela.
− Deixa. A gente tem que ser livre
pra viver.
Ela fala bem de
perto a ele. Os lábios roçam sua orelha. Cheiro de Jasmim.
− Vamos.
Segura-o firme,
dessa vez pela mão. Ele a segue.
− Qual o teu nome?
− Eu sou filha de Iemanjá. E tu?
− Não sei. Ninguém nunca me disse.
Ela parece
divertir-se em conduzi-lo pela noite.
Afastados do grupo,
mas ainda escutando o cântico dos pontos, se amam no encontro da areia com o
rio. Eles são parte da suave marola, causadores, causa, a própria coisa.
Elementais.
A água no rosto
acorda Samuel, dessa vez não do rio, mas da chuva. O dia está cinza e apesar da
garoa fina que cai sobre Porto Alegre, o mormaço continua. Ele olha ao redor e
está só. De quando em quando, passa um carro pela avenida. Pega o celular, 6
horas. Levanta molhado, sujo. Ainda a roupa social de trabalho do dia anterior,
agora irreconhecível. Anda um pouco e enxerga os restos do ritual da noite.
Oferendas, entre elas uma garrafa de espumante. Pensa em pegar, precisa beber
algo, mas desiste. Não se mexe no que é do santo.
Encontra nos bolsos
a carteira com documentos, cartões e dinheiro. Anda um pouco, pega lotação e
ônibus procurando ignorar o olhar curioso de motoristas e passageiros. Chega ao
edifício de três andares e olha para as janelas. Algumas abertas, outras não. A
rua começa a movimentar-se na manhã de sábado. Em frente a porta do apartamento
para e olha, coloca a chave com facilidade na fechadura e gira, mas sabe que
não está voltando para casa.
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