quinta-feira, 24 de outubro de 2013

INSEPULTA


Taiasmin Ohnmacht

 

Abriu os olhos. Nada. O teto branco, um pequeno ventilador e a certeza de estar em seu quarto. Seria o dia seguinte à ontem ou algum outro? Levantou do chão, olhou a bagunça ao redor sem qualquer emoção. Sentiu o cheiro forte de álcool. Nem enjoo, nem desejo. Estava morta. Então, chegou o dia tão anunciado por todos que se preocupavam com ela. Andou pelo apartamento, mas nada lhe pertencia. Viu a filha dormir no quarto ao lado e sentiu apenas a sensação de nada mais poder fazer, se não confirmar a própria morte. Saiu para a rua, sentiu a aragem da noite como algo estrangeiro à pele. Ela andava, olhava, escutava como se viva fosse, mas o corpo estava oco e transitava em um automatismo sem qualquer significado ou pertença. Imaginava que morrer fosse virar um espírito, mas morta estava reduzida a um corpo.

            Em seu ventre algo se agitava. Seriam as larvas devorando sua alma? A alma habitava o útero ou o intestino? Passou por um grupo de pessoas que sugavam a madrugada, mas se percebia mais próxima da poeira e das pedras. Ansiava pelo momento em que se tornaria completamente inanimada. Exilada da vida, talvez exalasse o cheiro de uma carne pútrida, agitada pela fome da morte. Até os pensamentos eram cada vez mais podres.

            Tudo se movimentava dentro dela e não era ela. Nada mais tinha importância no mundo, exceto a última ceia que oferecia. Em um boteco, segurava cálice de vinho tinto, último brinde para acalmar os vermes.

Um comentário:

  1. O rodopio da escrita. Esta necessidade que transmites vive n`alma do escritor. Escrever.. nada mais. Esta necessidade se infiltra pelos poros, toma conta de nosso corpo, de nossa mente, e apenas cessa por algum tempo após escrevermos. este frêmito persistente é diagnosticado como situação de escritor. As histórias tomam conta de nossa vida e temos que registrá-las num contínuo ato de criar. Parabéns, Taiasmin! Em breve chegará o dia em que te pedirei um autógrafo. Nenhum dia, sem uma linha. Te abraço Mariza nonohay

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